Como crianças inocentes, nossos índios desde os anos da Descoberta trocaram imensas quantidades de pau-brasil por bugigangas trazidas por europeus, sobretudo franceses e portugueses
Por: Luis Pellegrini (Revista Oásis – www.brasil247.com)
Hoje, quem quer conhecer a árvore que deu nome ao país precisa visitar algum jardim botânico, sobretudo os de São Paulo e do Rio de Janeiro, onde cientistas apaixonados cuidam com carinho de uma ou duas dezenas de espécimes frondosos que formam dois pequenos bosques nas encostas de colinas suaves. Fora dos jardins botânicos, só mesmo embrenhando-se em algum raro trecho de Mata Atlântica remanescente no leste e no nordeste. Nesses pedaços de floresta, com muita sorte e a ajuda de um mateiro experiente, pode-se encontrar ainda um ou outro exemplar selvagem de pau-brasil. A maior parte deles exemplares velhos, condenados ao desaparecimento. Sua reprodução tornou-se extremamente difícil por causa da exiguidade do seu número – o que impede uma boa genética de polinização – bem como, segundo foi descoberto, pelo quase total desaparecimento de uma pequena abelha especializada que, indo de flor em flor, e de árvore em árvore, é ferramenta indispensável para que essa mesma polinização ocorra.
Em 1500, no entanto, quando os europeus aqui chegaram, o pau-brasil era uma das árvores mais abundantes da Mata Atlântica. Seu número podia ser contado em dezenas de milhões. Mas ele logo começou a diminuir: uma derrubada predatória teve início, e nunca mais parou até o século 20 avançado, quando a extrema escassez desse vegetal inviabilizou sua exploração econômica.
O livro definitivo
O livro “Pau-Brasil”, da Axis Mundi Editora relata a epopeia histórica, econômica e cultural desse primeiro ciclo da economia brasileira. Seus autores, capitaneados pelo jornalista-historiador Eduardo Bueno, apresentam a árvore que deu nome ao país como uma metáfora da nossa difícil realidade passada e presente, bem como das incertezas do nosso futuro.
Começam por explicar que o nome Brasil não deriva da palavra portuguesa “brasa” ou “braseiro”, como outrora os professores ensinavam às crianças. Sua verdadeira origem é o termo celta brésil, que significa “vermelho”. Os franceses da Normandia – que logo após o Descobrimento se tornaram os primeiros traficantes de pau-brasil para a Europa – batizaram com esse nome a preciosa madeira rubra que aqui vinham buscar. A palavra brésil difundiu-se a tal ponto que, segundo o historiador João Ribeiro (1860-1944), “Brasil” na verdade é um galicismo: o primeiro galicismo da língua ‘brasileira”.
Escrito por oito autores nacionais e estrangeiros – Ana Roquero, Fernando Lourenço Fernandes, Gwilym P. Lewis, Haroldo Cavalcante de Lima, Jean-Marc Montaige, Max Justo Guedes, Nivaldo Manzano, além de Eduardo Bueno, “Pau-Brasil” apresenta rica iconografia, obtida na famosa biblioteca de José Mindlin.
No capítulo “Pau-Brasil: uma biografia”, os botânicos Haroldo Cavalcante de Lima, do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, e Gwilym P. Lewis, do Royal Botanic Gardens, de Londres, escrevem uma espécie de “árvore-genealógica” do pau-brasil. Ela nos remete às origens do processo que recobriu de florestas um planeta antes desnudo. Traçam, a seguir, uma história da floresta brasileira, onde explicam que o pau-brasil praticamente não tem parentes: trata-se de uma “espécie relictual”, ou seja, uma espécie “deixada para trás”.
Faltam informações precisas
Haroldo também assina o capítulo “Raízes do futuro”, epílogo do livro, onde traça as estratégias para a preservação da espécie e lança um apelo vigoroso às autoridades e a todos os brasileiros interessados não apenas no pau-brasil, mas em preservação ambiental, equilíbrio ecológico e desenvolvimento sustentável. Ele explica que os dados sobre a distribuição geográfica do pau-brasil, por exemplo, continuam espantosamente incompletos: “Em pleno século 21, simplesmente não existem informações precisas sobre a distribuição da espécie nem estimativas do tamanho das populações ou da área total de florestas com pau-brasil.” Haroldo enumera e localiza as reservas restantes dessa madeira e dos esforços que estão sendo desenvolvidos, principalmente em reservas localizadas no Nordeste, para aumentar as populações dessa árvore através de técnicas de reflorestamento. Por último, aborda uma curiosidade: com a madeira do pau-brasil são confeccionados os melhores arcos de violino do mundo, o que, devido à raridade dos exemplares remanescentes, por si só constitui grave ameaça de extinção da espécie.
O botânico carioca Fernando Lourenço Fernandes escreveu dois capítulos do livro. No primeiro deles, “O enigma do pau-brasil”, ele desenvolve uma abordagem surpreendente. Afirma que os portugueses certamente não poderiam ter descoberto o “pau-de-tinta” no emaranhado da Mata Atlântica com aquela rapidez que lhes permitiu, menos de cinco anos após o descobrimento oficial do Brasil, já estarem enviando para a Europa 1.200 toneladas da madeira por ano, como revelam documentos da época. As pesquisas de Fernando apontam para uma tese que a cada dia ganha mais adeptos: o pré-descobrimento do Brasil. Ou seja, o estudo do chamado “ciclo do pau-brasil” fortalece a tese de que os portugueses estiveram no Brasil antes de Cabral.
No capítulo seguinte, “A feitoria da Ilha do Gato”, Fernando Fernandes procura a localização exata da primeira feitoria de pau-brasil instalada no litoral brasileiro. Mesclando argumentos geológicos, etnológicos, arqueológicos, iconográficos, hidrográficos e históricos, ele revela que a primeira feitoria portuguesa no Brasil ficava na Ilha do Gato (hoje Ilha do Governador), em meio à Baía de Guanabara. Este seria, segundo o autor, o verdadeiro lugar de nascimento da nação brasileira.
Uma viagem colorida
O almirante Max Justo Guedes é uma das maiores autoridades nacionais em cartografia, história e viagens exploratórias ao Brasil no século 16. É dele o capítulo “La terre du Brésil: contrabando e conquista”. Guedes examina as questões semânticas relativas ao nome Brasil e a miríade de implicações que o tráfico dessa madeira acarretou.
A espanhola Ana Roquero, especialista em tinturaria e moda dos séculos 16 e 17, nos convida em seu capítulo “Moda e tecnologia” a embarcar numa viagem realmente colorida. Trata-se, na verdade, de uma jornada em direção ao poder e ao significado da cor vermelha. O trajeto se inicia na mística púrpura dos fenícios e passa pelo “brasil asiático” de Marco Polo, antes de podermos vislumbrar o papel desempenhado pelo pau-brasil no mundo da moda, das finanças e da indústria têxtil européias. Suas explicações permitem entender por que o pau-de-tinta moveu tantas fortunas e tantos interesses.
O capítulo “A madeira e as moedas”, do jornalista Nivaldo Manzano, aborda sobretudo as questões econômicas relativas ao ciclo do pau-brasil. Sua análise demonstra que temas como monopólio, privatização, tributação excessiva, contrabando, pirataria, espionagem industrial, globalização, ineficiência, corrupção, reserva de mercado, concorrência desleal e dívida externa – tão presentes na realidade de hoje de nossa nação – têm sua origem num passado muito mais remoto. Surgiram e se desenvolveram a partir da própria descoberta do Brasil e da primeira espoliação nele cometida – a do pau-brasil.
Num livro sobre o pau-brasil não poderia faltar a participação de um francês. Além do mais, de um francês da Normandia, de todas as regiões francesas a que mais teve trato com o Brasil e com o tráfico de pau-brasil no primeiro século após a descoberta. Esse francês é Jean-Marc Montaigne, talvez o mais atilado e dedicado pesquisador das relações entre o Brasil e a Normandia naqueles tempos. As descobertas que ele fez e as conclusões a que chegou são surpreendentes e certamente darão origem a muita reflexão. No capítulo que assina, “O índio ganha relevo”, Jean-Marc confirma aquilo que os historiadores brasileiros já sabiam: as relações que os franceses estabeleceram com as civilizações indígenas do litoral brasileiro foram, em geral, bastante cordiais e amistosas. Ao contrário dos portugueses, que vinham para conquistar terras e nelas se estabelecer, os franceses da Normandia queriam apenas fazer bom comércio. Davam aos índios produtos como facas, anzóis, roupas – e principalmente contas de vidro e bonés enfeitados com penas de galo – e recebiam deles toneladas de pau-brasil com as quais enchiam os porões de seus navios e as levavam para a Europa. O trato era tão cordial que foram produzidos inclusive “dicionários” normando-tupi-guaranis, contendo principalmente fórmulas de cortesia. Jean-Marc descobriu vários originais desses glossários, algumas páginas dos quais são reproduzidas no livro Pau-Brasil.
Influência da cultura indígena
O tráfico dessa madeira, como conta Jean-Marc, deu origem a imensas fortunas na Normandia. Até aquela época, a cor vermelha era privilégio dos reis franceses. Os pigmentos que permitiam tingir de vermelho os tecidos eram caríssimos, inacessíveis à população. Com a chegada do pau-brasil tudo mudou. Qualquer dona-de-casa podia produzir em seu fogão doméstico as tintas para tingir seus tecidos com infinitas graduações de cores rubras. O pau-brasil permitiu que alguns armadores normandos, como foi o caso de Jean Ango, por exemplo, acumulassem poder e fortuna superiores às do próprio rei.
Ao mesmo tempo – e nisso está a originalidade do trabalho de Jean-Marc Montaigne -, o contato com as culturas indígenas produziu insuspeitadas e fortes influências na mentalidade francesa e depois na da Europa como um todo. Influências não apenas restritas à moda, como foi o caso do uso de penas e plumas nos chapéus – obviamente inspirado pelos cocares e adornos indígenas -, que se tornou moda avassaladora tanto para as mulheres quanto para os homens.
Essas influências tiveram reflexos importantes na própria mentalidade e maneira de ser dos europeus. Jean-Marc observa que, naqueles tempos, o único modelo de organização social e de poder conhecido era o regime absolutista. O rei tinha direito quase de vida e morte sobre seus súditos, e pouquíssimos eram os que ousavam sequer imaginar uma situação diferente. Pois bem: muitos milhares de franceses vieram ao Brasil por causa do tráfico, marinheiros, oficiais, militares, comerciantes, gente da nobreza. No contato com nossos índios, eles se deparavam com uma organização social e com uma postura de vida completamente diferente, infinitamente mais livre e feliz. Os índios andavam nus, o governo não era exercido de forma absolutista por um único indivíduo, mas sim repartido entre o cacique, o pajé e um conselho de velhos sábios da tribo; e a relação entre homens e mulheres era muito mais igualitária do que na Europa. Ao voltar para casa, nas ruas e praças, nas tavernas, nas casernas, na própria corte, eles contavam o que tinham visto. Para resumir: segundo Jean-Marc, tudo isso exerceu enorme influência, inclusive na formação dos vários movimentos humanistas que começaram a pipocar na Europa desde então.
Reflexos materiais dessas influências podem ser vistos até hoje em vários monumentos arquitetônicos normandos, casas, palácios, igrejas, decorados com relevos em pedra ou madeira onde podem ser vistos, esculpidos, índios brasileiros nas mais diversas situações. Fotos tiradas nas cidades de Rouen, Honfleur, Saint Valery e Dieppe, entre outras, são reproduzidas no livro Pau-Brasil e dão uma idéia da dimensão que o contato entre normandos e índios brasileiros assumiu naquela época. Várias famílias indígenas foram inclusive levadas nos navios para a Normandia. A maioria nunca mais voltou. Alguns índios e índias acabaram se casando com brancos normandos, produzindo descendentes que até hoje moram lá. Em Rouen e Dieppe, no verão, costumava-se organizar festas “brasileiras”, uma espécie de carnaval alegre em que boa parte da população se vestia de “índio” e saía pelas ruas a dançar. O pau-brasil foi motor de tudo isso.
Uma espécie sequestrada
No epílogo de Pau-Brasil, no capítulo intitulado “Raízes do futuro”, Eduardo Bueno e Haroldo Cavalcante Lima desenvolvem de modo ainda mais brilhante o significado do pau-brasil como metáfora de nossa nação. Não apenas uma metáfora econômica, mas também como um símbolo da própria identidade política, cultural e social do Brasil.
“Praticamente em nenhum instante da história do país (colônia, império e república) os brasileiros puderam ter acesso ao pau-brasil para uso prático, estudos botânicos ou desfrute estético. Trata-se de uma espécie que, de certo modo, foi ‘sequestrada’ do convívio com o povo. Ela é a imagem de uma riqueza que sempre foi nossa e nunca pôde ser nossa”, comentam os autores. Eles concluem: “Eis aqui a atualidade da metáfora: já quase desde o primeiro dia da aventura colonial até a derrubada do último pé ‘protegido’ pelo monopólio, foi-nos negada a experiência cultural do pau-brasil. Negada como espécie botânica incorporada ao nosso mobiliário e às nossas construções; como tintura ligada às nossas cores, às nossas roupas e à nossa indústria têxtil; como espécie relacionada à agronomia, à silvicultura ou à própria paisagem. O pau-brasil é, assim, a metáfora mais bem acabada, mais perfeita e mais pertinente dos recursos naturais do Brasil: o símbolo botânico da usurpação da nossa cidadania e da nossa própria omissão ao longo do processo. O pau-brasil é a metáfora vegetal do Brasil que poderia ter sido, que deveria ter sido, e que ainda não é. Até quando não o será?”
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